SOCIOLOGIA


Professor Teodoro Melo

O PONTO DE VISTA DA SOCIOLOGIA

A sociologia funda sua convicção de que é possível estudar cientificamente a sociedade no pressuposto de que esta só pode resultar das ações dos indivíduos, ao mesmo tempo que tais ações são orientadas por estruturas, ou por valores, que se apresentam mais estáveis e duradouros que os próprios atores. A sociologia busca identificar as alterações que ocorrem na sociedade e definir a ordem que regula as ações dos homens e dá forma às suas relações. Pode ser a ordem dos positivistas, imposta pelas estruturas, ou a ordem kantiana, reconstruída pelos instrumentos analíticos de quem a estuda, ou até a finalista ordem da história, porém sempre uma ordem que permita estabelecer as leis de funcionamento da sociedade e as leis de sua mudança. Podemos dizer que Marx, Durkheim e Weber, considerados os fundadores da sociologia, por vias diferentes, têm perseguido esse mesmo objetivo.
Dois aspectos importantes devem ser ressaltados: os três autores formulam suas propostas científicas a partir da (e para a) sociedade industrial e capitalista; os três, e seus seguidores, buscam explicar os fenômenos sociais recorrendo exclusivamente à sociedade, isto é, partindo do pressuposto de que as causas dos fenômenos sociais devem ser buscadas exclusivamente nas relações entre fenômenos sociais.
Nesse sentido, estão definitivamente superadas as proposições de Montesquieu, considerado o precursor da sociologia, uma vez que ele foi o primeiro a procurar a conexão entre os fatores internos (as instituições e os valores) de uma determinada sociedade e os fatores externos (as condições climáticas e geográficas) da vida social (Montesquieu, 1973). O autor parte do pressuposto de que sob a diversidade caprichosa dos eventos, a história tem uma ordem que se manifesta em leis constantes. No substrato da história encontra-se a natureza humana, que consiste na tendência à autoconservação, à paz, à reprodução e à sociabilidade. Considera as leis como uma necessidade que deriva da natureza das coisas, e se todas as coisas têm leis, os homens também têm as suas. As leis às quais os homens obedecem, porém, não são condições necessárias. Diferentemente do "ser físico", governado por leis imutáveis, o homem, como ser inteligente, viola continuamente as leis de Deus e as que ele próprio estabelece. Assim, as leis da convivência humana não podem ser entendidas como fatos naturais, mas a partir das condições em que se realiza a convivência. O "espírito das leis", entendido como uma espécie de caráter de um povo, não se determina segundo um ideal, mas de acordo com uma série de fatores dos quais há que tomar nota sem preconceito, configurando-se como o resultado do equilíbrio entre os fatores internos e externos. Coerente com seus princípios, Montesquieu encontra razões objetivas ¾ um espírito das leis ¾ também para o despotismo que ele abomina. Esse sistema resulta da combinação de uma série de fatores internos e externos à sociedade: a grande extensão do reino, um clima malsão, o terreno árido, o caráter servil do povo e a falta de tradições capazes de limitar a vontade do senhor. No entanto, mesmo que se leve em conta as influências do clima sobre o temperamento, os costumes, a vida política e as leis dos povos, Montesquieu não acredita que os homens permaneçam passivos diante desse quadro. Quanto mais o clima afasta os homens do trabalho e da moral, tanto mais a religião e as leis os trazem para estes deveres. Para o autor, a compreensão científica é a compreensão da heterogeneidade das sociedades, é a compreensão das diversas possibilidades de ordenamentos sociais que não nascem nem da mera vontade dos homens, nem de alguma natureza dada a priori. Montesquieu é considerado o precursor da sociologia seja porque alertou acerca dos perigos de se confiar cegamente em princípios universais, à custa da realidade com suas especificidades, seja porque talvez tenha sido o primeiro a argumentar "cientificamente" que os povos primitivos também têm sua ordem e que esta deve ser compreendida por ela mesma (Abbagnano, 1992; Jonas, 1975).
Os fundadores da sociologia consideram os aspectos físicos do ambiente como elementos relacionados às características da sociedade, porém de sociedades anteriores à sociedade moderna, industrial e capitalista. Durkheim refere-se a fatos sociais da ordem anatômica ou morfológica, tais como a distribuição da população no território, o número e a natureza das vias de comunicação, a forma das habitações. Estes fatos sociais devem ser vistos como "modo de ser" das sociedades, porém não podem ser relacionados às maneiras de agir, sentir ou pensar, aos fatos sociais da ordem fisiológica, os quais representam, estes sim, o objeto da sociologia (Durkheim, 1978).
Para Weber, os determinantes sociais são tão numerosos e complexos que se torna impossível para o sociólogo não só pensar em explicá-los na sua totalidade, mas também supor que possa haver algum determinante universal. Os fenômenos sociais resultam de uma combinação de fatores cuja ordem e importância não estão associadas a leis previamente estabelecidas. Quanto aos fatores ambientais, o autor mostra em História Agrária Romana, em Sociologia Comparada das Religiões e em História Econômica Geral como tais fatores não são determinantes universais, mesmo que possam assumir relevância causal em conjunturas específicas.
Marx também se refere a elementos geoecológicos quando trata das formações sociais pré-capitalistas e relaciona, de forma bastante similar a Montesquieu, uma conformação geográfica específica ao sistema social despótico das formações sociais asiáticas (Marx, 1975). Em uma carta escrita a Engels, em 1853, assim se expressa:
"A ausência da propriedade privada é a chave para entender todo o Oriente [...]. Mas por quais motivos os orientais não chegaram a ter uma propriedade fundiária, nem mesmo feudal? Acredito que as razões residam sobretudo no clima, somado às más condições do solo, especialmente das grandes zonas desérticas que estendem-se desde o Sahara, passando pela Ásia, Pérsia, Índia, até os mais altos altiplanos da Ásia" (Soffri, 1977:27).
Em um artigo para o New York Daily Tribune (1853), intitulado" O Domínio Britânico na Índia", Marx continua empregando os termos" acredito", "me parece". Para ele, o que caracterizava o centralismo despótico oriental era a disposição físico-geográfica de pequenas aldeias auto-suficientes que o Estado indiano governava com três ministros: das Finanças (saque interno), da Guerra (saque externo) e das Obras Públicas (sobretudo de irrigação). Quando os ingleses ocuparam a região, regularam o primeiro e o segundo, mas ignoraram o terceiro e inundaram o país de manufaturados. Essa política levou à ruína a agricultura indiana e o sistema de aldeia que integrava a produção agrícola e a produção de tecidos. Marx, segundo Soffri, teria manifestado uma certa pena dos indianos, mas não muita, já que considerava o sistema de aldeia a verdadeira base de sustentação do sistema despótico. Somente depois de 1860, quando estudou os etnólogos e a Rússia, Marx convenceu-se de que a comunidade agrícola havia sido a forma primitiva da sociedade (Soffri, 1977). O que resulta bastante claro é que também em Marx prevalece a convicção de que a natureza condiciona o homem somente até o capitalismo.
Assim, como se pode verificar, os fundadores da sociologia não ignoram os fenômenos ambientais e a questão dos recursos naturais (ver Buttel, 1992). Entretanto, para a sociologia enquanto ciência nascida da sociedade industrial, moderna, ou capitalista, e que faz desta sociedade seu objeto privilegiado de estudo, a relação do homem com a natureza permanece um pressuposto da explicação, porém não tem valor analítico e muito menos valor explicativo dos fenômenos. A esse respeito, o pensamento de Marx demonstra uma maior riqueza e, por isso, merece que nos detenhamos um pouco nele.
O autor destaca a relação homem-natureza em momentos fundamentais de sua construção teórica: quando se refere, em obras diferentes1, ao "trabalho" como sendo a prática que distingue o homem dos outros seres vivos e que se fundamenta na atividade de troca entre o homem e a natureza; e quando se refere, nos Manuscritos de Paris (Marx, 1968), à própria "natureza humana". Em sua teorização a respeito da natureza humana, Marx descarta, ao mesmo tempo, duas visões: a mais atual, iluminista, segundo a qual o homem seria naturalmente egoísta (na versão inglesa de Hobbes ou da economia política), ou naturalmente bom (na versão francesa inspirada em Rousseau). Para ele, ambas são falácias ideológicas, sobretudo a do egoísmo natural e da conseqüente naturalidade das lutas entre os homens. Para Marx, se o homem é egoísta, ele o é de fato nesta sociedade, na sociedade capitalista. A segunda visão, ligada à teologia e ao idealismo, à visão espiritualista, postula que a natureza humana se realiza na abstração espiritual, isto é, no respeito a Deus, entidade à qual o homem deve a sua existência. Nesta visão, como o homem, de fato, não pode se separar da natureza, esta se torna o principal obstáculo à sua própria realização. A natureza é aqui entendida como "animalidade", donde conclui-se que: a liberdade humana encontra-se na dissociação do homem com a natureza; a dignidade humana exprime-se na capacidade do homem de controlar a natureza; a natureza humana realiza-se na espiritualidade.
Marx refuta ambas as visões, porque considera uma ilusão se preocupar com o "homem em geral", com a idéia abstrata de homem; seus interesses são pelo "homem real" que, para ele, não é nem bom nem mau, nem egoísta nem altruísta, nem espiritual nem bestial. O homem é um ser que é "parte da natureza", porém é também um "ser genérico" e, por isso, tem características que correspondem à sua espécie. O que, para Marx, é específico do homem enquanto ser que é "parte da natureza"? Ele é, em primeiro lugar, um" ser natural": tem corpo, é limitado, tem força viva, é ativo, tem capacidade de interagir. Ser um ser natural que é parte da natureza significa: que existe uma natureza fora de si mesmo; que qualquer ser natural é objeto para outro ser natural; e que, portanto, é parte de um conjunto. Tais características próprias do "ser natural" não são exclusivas do homem: toda espécie de seres naturais, sejam animais ou vegetais, as possuem. Como o homem, além de "natural", é também um" ser genérico", o autor atribui ao "ser natural" a determinação de" humano". Assim, o homem visto como "ser natural humano" significa: que tem uma "natureza genérica" fora de si mesmo; que é objeto para outro ser natural humano; e que faz parte de um conjunto que pode se fazer por si mesmo a cada momento. Faz parte de sua natureza humana a tendência à associação consciente, e a sociedade ¾ a formação social ¾ é a segunda natureza do homem. Nesse sentido, nada do que é propriamente humano (idéias, paixões, respostas aos instintos) é imposto ao homem pela natureza; nada disso é universal ou natural; tudo é conquista do homem. Assim, para Marx, a sociedade é a unidade essencial do homem com a natureza e, por isso, fala em "naturalização do homem" e "humanização da natureza" (idem).
Sendo o tema central marxiano o da "liberdade dos homens", o autor busca a dimensão onde esse valor possa ser encontrado e procura compreender quais seriam os obstáculos para alcançá-lo. Conclui que a liberdade se encontra na sociedade e os homens são conduzidos a ela pelas suas necessidades (condições) e pelas suas capacidades (ações, práxis), ambas em contínua mudança, em evolução, ambas históricas e não naturais. E o que se interpõe como obstáculo à liberdade dos homens? Os próprios homens, e, por isso, as lutas entre eles também são históricas e não naturais. Se tudo em Marx volta de novo para a sociedade, se a natureza que vale é a humanizada e se a natureza é vista como um "limite" à expansão das potencialidades do homem, mais do que o reino da realização de sua própria natureza2, por outro lado, é presente para ele um projeto de sociedade capaz de romper com a concepção da natureza como exclusivo campo de aproveitamento utilitário. Nas partes em que se refere à futura sociedade comunista3, a sociedade sem classe é também a sociedade da reconciliação do homem com a natureza.
A sociologia nasceu, portanto, com a marca de um pensamento que tornou independente a sociedade da natureza, ou no qual a natureza era simplesmente um derivado da sociedade. É importante ressaltar que esta concepção foi uma conquista da modernidade, já que a grande revolução no pensamento, da qual a sociologia foi partícipe, consistiu justamente em eliminar qualquer influência de forças externas sobre a sociedade (tanto a "vontade divina", como as leis da natureza), capazes de determinar a ordem e as leis de funcionamento da própria sociedade. Com a sociologia os homens se tornavam, finalmente, responsáveis por seus atos e eram livres para construir sua sociedade, conservando, ao mesmo tempo, o antigo sentimento de serem os dominadores da natureza.